quinta-feira, 26 de setembro de 2013

O estuprador perfeito

Ele é jovem, negro e pobre. Forte, musculoso, tatuado, de olhos escuros e sem compaixão enquanto insolentemente conta sua história, com a voz dura e firme quando se lembra do horror que provocou como se fosse uma banalidade. Filho de uma família pobre, mas com pai e mãe trabalhadores e honestos, uma vergonha para sua família humilde e residente em periferia. Todos os domingos badalava, era usuário ocasional de drogas. Usa roupas que deixavam claro sua condição de pessoa pobre, quase só fala palavrão. Irritadiço, exploviso, grosseiro mesmo. Anoitecia e lá estava ele em busca de uma mulher piranha, vagabunda, vestida de forma provocante. Não tinha estudo, nem era bom profissional.

Um dia, após longo e frio planejamento psicopático, em plena luz do dia, atacou uma vítima que não o conhecia, levando-a a um matagal e estuprando-a. Matou, desfigurou o corpo, ocultou o cadáver. Era um psicopata, um monstro. Dois policiais passando pelo local viram a cena. Correram até a área imediatamente. Perseguido, preso em flagrante, ele deu depoimento para as redes de televisão demonstrando não ter o menor arrependimento.

O homem foi preso imediatamente, julgado e considerado culpado. Já tinha passagem na polícia por estupros e assassinatos, era procurado. Um monstro, disseram. Por fazer isso com a pobre menina. Dentro de alguns anos, novamente livre, volta à criminalidade novamente, deixando claro que é irrecuperável e que seu passado não pode ser deixado para trás.

Comoveu-se com esta história?

Que interessante, pois ela não existe.

O estuprador perfeito é o personagem imaginário na cabeça das pessoas que culpam as vítimas reais de estupro. É a única pessoa que todos odiariam realmente, caso vissem esta história nas notícias. Pois na cabeça de pessoas criadas em uma sociedade misógina, racista e elitista, somente este estuprador imaginário merece pena, e provavelmente de morte.

Ninguém acreditará na historia da menina negra estuprada pelo tio, afinal o tio é tão bonzinho e a garota usava shorts tão curtos. Não era nada inocente, esta garota. Deve estar mentindo.

Ninguém acreditará na história do professor universitário, branco, da área de humanidades, que estuprou uma aluna. Afinal, nas humanas estuda-se a história ao longo da qual se consolidou a discriminação contra mulheres, e os profissionais dela estão isentos dos preconceitos, pois os estudaram e os pensaram criticamente.

Ninguém acreditará na história da garota que denunciou o estuprador que fazia parte da Convergência Socialista ou outra organização de esquerda. Afinal, era uma instituição que lutava contra o machismo e pela construção de uma sociedade igualitária, e ele jamais faria isso.

Ninguém acreditará na história da estagiária de direito que foi estuprada por um colega de trabalho. Eles eram muito amigos, ele era um advogado de respeitado em sua área e jamais faria isso.

Ninguém acreditará na garota que deixou um amigo ir ao seu apartamento, crente de que ele era uma pessoa de confiança, e acabou sendo violentada. Ela quis, ela o deixou entrar, ele é um homem íntegro, apenas aproveitou uma "oportunidade".

Ninguém acreditará no garoto que foi estuprado pelo padre. O padre é um homem de bem, honesto, que jamais faria isso, e acusar ele disso já é pecado.

Ninguém acreditará que aquele cliente de prostituição estuprou, de fato, aquela mulher. Afinal, se era uma prostituta, não foi estupro...

Ninguém acreditará que aquele marido tão atencioso, que trata a sua mulher tão bem publicamente, na verdade a violenta em casa e a estupra de tempos em tempos. Que ela não sai da relação não porque está gostando dela, mas porque tem medo.

Ninguém acreditará que vários ídolos, famosos, da sua banda preferida, estupraram duas menores. Elas só podem estar mentindo ao fazer a denúncia.

O estuprador perfeito é o bode expiatório desta sociedade. Ele é também o assaltante perfeito, o assassino perfeito, o sequestrador perfeito. Ele é o perigoso e o marginal por excelência: o homem negro e jovem da classe trabalhadora.  E ele existe somente no imaginário coletivo das pessoas misóginas, racistas e elitistas como a única pessoa digna de se temer como um possível agressor. Os demais? Homens de bem - "ele nunca faria isso".

Proteja-se de estupradores reais. Porque o perigo pode estar muito mais perto do que você imagina.

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Este texto foi uma homenagem ao texto A vítima de estupro perfeita, da página Uma Feminista Cansada. Fica mais compreensível lendo a publicação original. Gostaria de convidar a autora da página a opinar a respeito deste texto.

2 comentários:

  1. olá, jenniffer.
    ótimo texto, ótimo blog. trago uma questão sobre o tema que você tratou e que é um dos mais abordados pelas páginas feministas que venho lendo há algum tempo.

    sou um homem e, como é de se esperar, sinto dificuldade em entender os problemas, ou alguns dos problemas, das mulheres com relação ao machismo. não em tudo, creio não ser tão ingênuo e consigo observar a máquina machismo funcionando, mas como estou na pele de um homem é logicamente mais difícil.

    a minha principal dúvida é justamente essa, com relação ao "estupro real". nos meus últimos relacionamentos agi equivocadamente com minhas parceiras. muitas vezes, tomado pelo tesão, acabei forçando a barra quando quem estava comigo claramente não queria... depois de ler alguns textos feministas sobre isso, fiz uma releitura de todas as minhas antigas atitudes e senti uma vergonha absurda de todas as vezes em que agi e que o que fiz pôde ser caracterizado como estupro. "ela era minha namorada", eu pensava, e os textos que li me fizeram entender que isso não me concedia o direito de invadi-la, e que eu estava sim a subjugando, apoiado pelo privilégio de ser homem -- o que eu simplesmente não conseguia enxergar como privilégio.

    sentindo vergonha conforme ia tomando consciência, entrei em contato, pedi perdão e expliquei o que eu enxergava hoje para todas as minhas ex-parceiras às quais eu percebi ter desrespeitado/violentado. elas disseram entender. e então me obriguei a nunca mais repetir isso na minha vida, a nunca mais cometer um crime vergonhoso como esse e me livrar da prisão/privilégio de "ser homem" nessa sociedade doente.

    até aí, ok, as coisas estavam se transformando. e então eu me relacionei com uma nova mulher. desde o início me policiei, temendo repetir violências. até que comecei a prestar atenção em como ela agia. percebi que tiveram momentos em que eu não estava afim e que por ela forçar a barra eu cedi. isso pode soar estranho... bom, é claro que eu também senti tesão, mas isso não anula o fato de que inicialmente eu não estava afim e ela forçou a barra. talvez eu esteja errado e não esteja enxergando o meu "privilégio" masculino, mas a impressão que tive foi de que o modo como ela insistiu para que transássemos foi muito semelhante, para não dizer idêntico, ao modo como eu insisti com as minhas antigas parceiras.

    enfim, com isso em mente, eu passei a simplesmente não entender mais se aquilo que eu tinha feito com as minhas antigas parceiras caracterizava-se como estupro, como eu entendi ser depois de ler alguns textos feministas (e, dessa forma, o que a minha parceira de então havia feito comigo era também estupro) ou se houve algum exagero por parte de algum texto ou da minha própria interpretação.

    eu sei que este é um caso aparentemente mais sutil e complicado, pois os sujeitos envolvidos estão juntos e em relacionamento amoroso por livre vontade. mas gostaria de saber o que você pensa sobre, pois essa questão ainda não foi resolvida em minha mente e por mais que eu leia texto atrás de texto pela internet não consigo solucioná-la. algumas das feministas que conheço não me parecem acessíveis ou interessadas em conversar sobre isso sem abandonar a unilateralidade feminina, o que eu compreendo e apoio, calando-me. no entanto, nada se esclarece. portanto deixo esta mensagem, como um anônimo, e serei grato se você puder responder. acho que escrever e pensar sobre isso pode não só ajudar a mim, que sou homem, mas também às mulheres que sofrem violências em seus relacionamentos e se recusam a enxergá-las como tal.

    desejo-lhe força sempre. até.

    (eu estou enviando este comentário como uma conta fake -- demiann@live.com. durante a autenticação aqui do blogger, a google associou a minha conta a esta conta "Hibari", que eu desconheço. como não consegui pelo wordpress, estou enviando assim mesmo)

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  2. Como sou sobrevivente de estupro, demorei muito para conseguir ler o seu comentário até o final - geralmente eu não conseguia passar do "acabei forçando a barra quando quem estava comigo claramente não queria..."
    Agora, o que tenho para te dizer é: na dúvida, o melhor é sempre recuar. Se você não tiver certeza de que a pessoa está gostando, não force. O que as suas namoradas fizeram foi insistir e fazer você mudar de idéia com a insistência. TALVEZ isso tenha acontecido qdo vc pegou pesado com suas ex-parceiras e TALVEZ não. Na dúvida, apóio a sua decisão de não repetir nada parecido.
    Gostaria de lembrar que há diferenças físicas entre mulheres e homens - é muito mais fácil um homem machucar uma mulher ao tentar forçá-la do que o contrário. Para a atividade sexual é ideal que a mulher esteja relaxada, para ter dilatação e lubrificação, caso contrário ocorre a dor. No caso do sexo anal é ainda mais importante que a mulher esteja calma. Já com o homem não é bem assim, é muito difícil uma mulher conseguir ferir um cara para cima de quem ela esteja se forçando.
    O importante é que você entenda que nunca novamente deve correr o risco de magoar tanto uma pessoa nem de ter que carregar tal peso na consciência.
    Qdo vc diz "a impressão que tive foi de que o modo como ela insistiu para que transássemos foi muito semelhante, para não dizer idêntico, ao modo como eu insisti com as minhas antigas parceiras". O duro é que essa impressão pode ser falsa =/ Além disso, o homem goza de um status diferenciado na sociedade - a mulher foi ensinada a ceder, a cuidar do outro, a não conhecer direito o próprio corpo e os próprios limites, a se sentir inútil e sozinha se não conseguir "segurar" um namorado/marido por perto, enfim... tudo isso contribui para as mulheres não conseguirem reagir qdo se sentem coagidas a fazer algo que, no fundo, não querem.

    Na narrativa "percebi que tiveram momentos em que eu não estava afim e que por ela forçar a barra eu cedi. isso pode soar estranho... bom, é claro que eu também senti tesão, mas isso não anula o fato de que inicialmente eu não estava afim e ela forçou a barra", vejamos o que acontece:
    Você não queria, houve insistência, então você cedeu. E sentiu tesão. Bom, isso me faz pensar que você mudou de idéia "no meio do caminho", que ela te convenceu. O que acontece no estupro é que a mulher não quer, continua não querendo, não necessariamente demonstra de forma clara (algumas paralisam, por exemplo), e continuam se sentindo muito mal depois que tudo terminou, geralmente por um longo tempo.
    Talvez a gente consiga esclarecer melhor com mais troca de mensagens.

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