terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Feminismo e doenças mentais

   Depressão, síndrome do pânico, TOC, anorexia, crises de ansiedade...  ou você tem um desses ou tem uma amiga feminista que tenha. Nada mais do que esperado, afinal estamos sempre expostas a muita violência. Temos que lidar não só com a que nos atinge diretamente como também com a que fere outras mulheres.
     Presenciar diariamente tanto horror, ler sobre, ver fotos, vídeos etc deixa as pessoas mais suscetíveis a recaídas nesses problemas psicológicos e psiquiátricos. Porém, "eu tenho problema de saúde mental X e você está piorando isso" vem sendo indevidamente usado para interromper discussões quando a outra está ganhando na argumentação. E isso é desonesto.
     Depressão ou ansiedade não são meramente um incômodo que se sente quando se é contrariada. Quem usa isso cada vez que a discussão não caminha em seu favor está abusando da empatia alheia. Se não tem a doença em questão, está sendo grosseira com quem tem. Se tem, mas não está apresentando sintomas naquele momento e mente a respeito, está usando a doença para comover de uma maneira tal que fica mais difícil de tratar. Afinal, acabamos aprendendo que essa doença também pode ser usada de escudo, ficando mais duro superá-la.
     É difícil mesmo achar o limite. Eu, por exemplo, tive depressão e já me aconteceu de achar que era uma recaída, quando foi só um alarme falso. Pode mesmo acontecer em momentos estressantes como uma discussão acalorada, mas há diferença entre engano e má fé e essa última tem se repetido há algum tempo.
     Tratar os problemas de saúde psicológica e mental com seriedade é necessário para nossas próprias curas e para fazermos um movimento sem chantagens emocionais. Com respeito umas pelas outras.


terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Não me marquem em publicações

      Notificação nova. Alguém te marcou em uma publicação que você curtiu ou compartilhou, criticando sua atitude. Às vezes, até publicamente. E quer satisfação. 

      Discordar de um post, julgar e condenar previamente quem gostou dele, expor as pessoas num status (frequentemente público), se fazer de surda às contra-argumentações, cortar relacionamento com dissidentes e, a cereja do bolo, incitar outras pessoas a romperem com essa mulher é um roteiro doentio que vem sendo seguido exaustivamente dentro do movimento feminista. 

      Já passou da hora desse comportamento tóxico começar a ser questionado. Colocando nessas palavras, fica óbvio que é uma postura autoritária. É difícil de entender por que ninguém questiona esse método, se ele está machucando tanto, tanta gente. 

      Primeiramente, o movimento feminista precisa com urgência sair da lógica “discordou nisto aqui é minha inimiga”. Ao longo desses 30 meses de feminismo radical, consigo citar ao menos uma dúzia de mulheres com quem me desentendi que me excluíram completamente das suas vidas como se eu fosse perigosa como um pedófilo ou um assassino de mulheres em série. Não consigo olhar para as mulheres que me excluíram ou bloquearam como gente que está do lado de lá da trincheira. Sejamos lúcidas: não estamos em lados opostos. 

      Quem te marca em postagens espera que você caia de joelhos e implore por perdão. Não existe nenhum outro comportamento que vá ser aceito, principalmente contra-argumentar. Sua réplica pode ser a mais legítima, não vai adiantar porque o objetivo nunca foi promover um avanço da sua consciência com relação ao erro daquela postagem. A pessoa já tem opinião formada tanto sobre a tal postagem quanto sobre o caráter e a moralidade de quem gostou dela. 

      Argumentos políticos frequentemente vêm mascarando a feiúra da alma de algumas pessoas. Necessidade de impor pontos de vista, de sentir que tem poder sobre as outras, de sobre-valorizar a si mesma como amiga, de ser estrela em um nicho qualquer (ainda que ele seja minúsculo e marginal), de ser violenta com outras, de isolar outras, de extravasar impunemente toda a própria hostilidade são por vezes os motivos reais que levam as feministas a seguir esse comportamento nocivo. (Qual seja: pedir satisfação, ignorar a satisfação dada, bater a porta na cara da pessoa e jogá-la aos leões para ser devorada.)

      As pessoas chegam no movimento já testemunhando esse tipo de violência e assimilando que aquilo é normal e aceitável. Não é.

      Mas a origem do problema não é moral. Não reside nos defeitos das feministas enquanto seres humanos. O nó surgiu de outra parte: o telefone-sem-fio através do qual são repassados os conceitos feministas.

      Sororidade, reação do oprimido, privilégio, opressão, lugar de fala, horizontalidade, liberalismo, problematização, entre muitos outros são conceitos, são ferramentas a partir das quais podemos analisar a realidade com mais profundidade. Esses conceitos surgiram em contextos específicos e têm significados específicos. Quem os aprende descolados desses contextos, através de explicações rasas de poucas linhas, geralmente ditos com simplicidade por amigas corre um risco muito alto de usá-los de forma errada. 

      E errar no uso dos conceitos, nos significados das palavras, da compreensão delas está gerando discussões infinitas, em que se fala A e se entende B. Como as palavras são as mesmas e cada uma acha que significa uma coisa, ninguém se entende. Uma má compreensão desses conceitos também dá margem para comportamentos supostamente baseados neles, e portanto legítimos, mas que na verdade são distorções.

      Exemplo neutro: vou ignorar que tal pessoa me ofendeu, porque tenho que ser soror (irmã) de todas as mulheres. Agir assim é não entender o conceito de sororidade e provocar prejuízo a si e talvez a outrem por conta disso. Usei esse exemplo porque é uma confusão que não costuma acontecer – não cito as que geralmente acontecem porque vão entender que é “indireta”.

      Aliás, o oposto da vexação pública de pessoas selecionadas é a indireta, igualmente nociva. As pessoas postam coisas genéricas em seus status e
  • criam um estado de alerta entre todas as amigas, que como foram educadas num país cristão, ficam se martirizando com culpa - ao invés de repensar saudavelmente possíveis erros ou simplesmente perceber com clareza “não era comigo”. Mulheres geralmente pensam “se alguém errou, fui eu”. Quantas vezes vocês já viram: “ =O Fui eu? Mil perdões não tive a intenção” etc e a resposta foi algo como “Não querida relaxa, você nunca faria isso ;)” Isto é sintomático de como essa metralhadora giratória que são os status de indiretas acionam culpa cristã e objetivam ferir pessoas específicas com quem não se tem coragem/maturidade para falar honestamente. E honestamente não é nem indireta nem agressividade explícita.
  • Geram guerras nucleares totalmente evitáveis – e dispensáveis!
  • Cria uma cultura de “desabafos” inbox que nada mais são do que falar mal de mulher pelas costas (“Hey, fui eu?” “Não, foi a fulana, ela fez isso e aquilo” e a conversa segue sem que quem supostamente errou amadureça no que fez).
  • Caso a(s) pessoa(s) para quem foi voltada a indireta seja atingida e comente, a discussão não vai ser melhor porque o nome dela não foi citado desde o começo. Não, você não estava só desabafando, muito menos pra ninguém em particular – você estava efetivamente tentando atingir mulheres e todo o seu comportamento posterior na discussão atesta isso.

      Eu estou chamando a leitora para conversa como interlocutora direta (tanto na posição de ofendida quanto na de agressora) porque simplesmente todas nós sofremos com isso e a maior parte de nós já cometeu esses erros. Existe uma diferença forte entre uma “indireta” e a dissertação sobre um problema amplamente difundido. Eu só gostaria de não ter que escrever isso, e que todas nos voltássemos para as feministas que já escreveram sobre hostilidade entre mulheres no passado, fizeram isso muito melhor do que eu e apanharam muito para deixar as lições que nos deixaram – e que temos ignorado. 

      Essa cultura de blogs e textos curtos, escritos por pessoas que conhecemos, tem muitas vantagens, mas melhor ainda é perder o medo da erudição, perder o medo das feministas mais antigas e respeitadas, se tornar íntima delas, romper as barreiras e perceber que estamos todas no mesmo patamar. Somos só um bando de ferradas tentando ter uma vida melhor e dar uma vida melhor para as outras mulheres. Nós aqui e as feministas norte-americanas da década de 60.

      A última coisa que eu gostaria de dizer é que o problema não está no Facebook, ou nas redes sociais, ou na distância imposta pelo computador. Essas coisas podem ser agravantes, embora nem sempre sejam, mas nós temos tecnologia mais do que o suficiente à disposição para manter conversas saudáveis e fazer discussões políticas em vez de pessoais. 

      Prova disso é que esses erros ocasionalmente são levados para espaços de militância presencial e explicam em boa parte porque algumas feministas não conseguem se adaptar a lugares de militância que não estão infectados com essa lógica ainda. Não conseguem a impor e saem. 

      E nem tentem transformar isto num debate de hipócritas X ilibadas. Eu não estou nem acima nem abaixo de ninguém para dizer essas coisas – nem ninguém está.

sexta-feira, 21 de março de 2014

Feminismo utópico X Feminismo científico



     O socialismo, como ideal de uma sociedade igualitária, começou na convicção de que conscientizar a burguesia da exploração que ela promovia era um passo necessário para transformar a sociedade. O socialismo científico parte do princípio de que essa ideia é ingênua e de que a burguesia, ainda que consciente, jamais vai abrir mão da sua possibilidade de explorar. Para acabar com o capitalismo, portanto, é necessário que a classe trabalhadora tome o poder para si. A burguesia é inimiga e assim vai continuar, mesmo que consciente do mau que causa - só o uso da força é capaz de transformar a sociedade de fato.
     O marxismo busca a emancipação da classe trabalhadora da exploração promovida pela burguesia. Porém, as mulheres trabalhadoras não têm apenas o patrão lhes explorando, mas também os homens lhes oprimindo. Tire o capitalismo, e uma parte considerável dos graves problemas das mulheres permanece: o estupro, a violência doméstica, a violência obstétrica, a criminalização do aborto, os padrões de beleza, etc. 
     Assim, para uma sociedade igualitária de fato, seria necessário acabar com o capitalismo E com o machismo, bem como outras opressões (racismo, xenofobia, intolerância religiosa, etc). Nas excelentes palavras de Rodrigo Silva do Ó:
"porque todos esses setores atacam o feminismo radical?  A resposta é muito simples: para manter dogmaticamente a ideia de 'unidade da classe trabalhadora', todas essas teorias precisam necessariamente dizer que os homens da classe trabalhadora não se beneficiam da opressão da mulher. 

Então, no fundo todas essas teorias, se forem vistas do ponto de vista da polêmica central no feminismo, são variantes do feminismo liberal. A diferença é que, em vez de só defender a igualdade nos direitos políticos, também defendem nos direitos trabalhistas e sociais em geral. Ou seja, é uma luta por igualdade (mesmo que seja no socialismo), e não por libertação (porque aí teria que se responder a grande pergunta: se libertar de quem?)."
     
     A resposta é óbvia, mas ainda assim necessária: se libertar dos homens. E eles são igualmente opressores em TODAS as classes sociais. São, sim, todos beneficiários da existência do machismo. E não vão abrir mão dos seus privilégios, ainda que lhes eduquemos, eduquemos e eduquemos. Toda a "formação no debate feminista" se esvai diante de uma mulher bêbada e vulnerável a estupro; toda a formação desvanece no ar quando a esposa faz algo que lhes deixa furiosos, ante a certeza da impunidade caso o cara queira bater nela. 
     Feministas marxistas investem um tempo precioso, que poderiam estar empregando em auxiliar outras mulheres... enxugando gelo, "dando formação no debate feminista" para quem só vai usá-la para sofisticar a contra-argumentação ao feminismo. O feminismo marxista, curiosamente, não deu o salto do feminismo utópico ao científico. Não se deu conta de que a dissolução do patriarcado só se dará mediante o uso da força revolucionária das mulheres. 
     Não duvido de que muitos homens deram ouvidos ao que suas companheiras têm a dizer sobre machismo e, com isso, foram menos violentos com mulheres ao longo da vida. No entanto, além de minoritários, eles continuam com poder de oprimir e optam por não usá-lo. Sendo que a tarefa feminista deve ser retirar dos homens o poder de oprimir. Não deixá-los livres para fazê-lo e depois se gabarem de não usar a força porque são moralmente superiores, melhores, mais educados. Não podemos ficar contando com a boa-vontade masculina, torcendo para eles, além de nos ouvirem, ainda por cima aplicarem o que ouviram. Temos que colocar impeditivos concretos que barrem a violência deles contra nós. 
     Recentemente, comentaram na página Polêmicas feministas o seguinte "Feminismo, uma invenção da burguesia para desviar o foco do real problema". Me arrependo amargamente de ter excluído sem printar. Não sei vocês, mas acho que os seguintes problemas parecem bem reais:











     É só colocar "mulher" como palavra-chave de busca nos principais portais de notícias que você achará dúzias de matérias como essas. Foi o que eu fiz, notem as datas, todas notícias de ontem. São dezenas por dia, e só não são milhares porque uma quantidade imensa de violências jamais é  noticiada. Quem são os homens dos partidos de vocês para dizerem que o nosso problema não é real? 
     Provavelmente, a coisa mais surreal na esquerda é que as feministas marxistas fazem um  feminismo compatível com as idéias da primeira parte do século XIX, o socialismo anterior a Marx e Engels.

                                                             

terça-feira, 18 de março de 2014

A diferença entre os feminismos liberal e radical



     Muita gente não compreende termos como feminismo liberal/libfem - e não tem obrigação. Muitas feministas liberais não se percebem como tais e, embora não deixem de o ser por conta disso, não sabem do que está sendo falado quando são chamadas assim.
     Na minha concepção, a diferença fundamental entre os feminismos liberal e radical gira em torno do sentido que cada um dos dois dá à palavra "consentimento". 
     No neoliberalismo, é enfocada a livre iniciativa, que é individual. É a sociedade do indivíduo que, do alto do seu empreendedorismo e liberdade de escolha, faz o que quer, com o mínimo de intervenção estatal possível. O neoliberalismo tem respaldo ideológico no cristianismo protestante, defensor árduo do livre-arbítrio concedido por Deus. 
     Já o feminismo radical pensa a sociedade estruturalmente, não em termos da soma de várias individualidades isoladas e autônomas. Para o feminismo radical, temos uma ilusão de fazer escolhas quando, na verdade, somos condicionadas desde os primeiros anos a "escolher" determinadas coisas e, quando não as "escolhemos", sofremos represálias - seja da Igreja, do Estado, da família, do mercado de trabalho ou dos círculos de sociabilização que integramos.
     Para o feminismo liberal, quando a mulher "consente" não há estupro. Para o feminismo radical, há que se analisar friamente a diferença entre ceder, apesar de desejar outra coisa, e querer - fazer o que quer. Quando uma mulher está em situação de prostituição, portanto, para o feminismo radical está sendo vítima de estupro. O fato de ela ter "consentido" com aquela relação sexual não quer dizer que ela não o fez mediante coação - financeira e social.
     Para o feminismo liberal, quando a mulher intervém no próprio corpo aproximando-o do padrão de beleza hegemônico ela está exercendo liberdade de escolha sobre si. Para o feminismo radical, ela está meramente expressando algo para o que ela foi condicionada.
     Para o feminismo liberal, as mulheres hetero - TODAS as mulheres hetero - se relacionam com homens porque querem, porque gostam, e isso tem que ser respeitado. Para o feminismo radical, todas as pessoas nascidas na sociedade atual foram condicionadas à heterossexualidade igualmente. Algumas são de fato hetero e outras estão apenas reproduzindo um comportamento aprendido, mas estariam melhor se fossem bissexuais ou lésbicas. Elas não escolheram meramente. Elas foram ensinadas que fazer o contrário é pecado, que poderia acarretar expulsão de casa, que era sinônimo de fracasso ser lésbica porque é sinal de que "nenhum homem te quis", enfim, isso é coação. Há muito sexo hetero que parece ser demandado pela mulher que é, na verdade, demandado por uma sociedade que a colocou em desespero para fazer aquilo para se sentir aceita e amada. 
     Para o feminismo liberal, portanto, agimos de acordo com o livre-arbítrio dado por Deus, enquanto que para o feminismo radical estamos inseridas em estruturas que moldam a nossa vontade. Antes de agir, uma feminista radical coloca a sua vontade em questão. Eu quero isso porque sim ou porque fui condicionada a querer? Eu quero me depilar ou me convenceram de que eu quero, sendo que na verdade não? Eu quero ter um namorado ou todo mundo à minha volta quer que eu tenha um e eu internalizei essa vontade?
     O feminismo liberal, portanto, quase que desconsidera o processo de internalização da opressão (quando a oprimida traz para dentro de si a voz do opressor). Para mim, essa é a diferença entre o feminismo liberal e o radical que explica todas as outras.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

A questão não é se o dinheiro traz felicidade ou não



      As revistas femininas estão sempre cheias de exemplos de mulheres bem-sucedidas, que foram longe na carreira, ganharam dinheiro, ocuparam cargos de chefia e... largaram tudo, ou quase isso, em nome da "felicidade". Perceberam que o trabalho estressava demais, distanciava da família, tirava o tempo e o sono, e concluíram que não compensava. Resolveram apostar em um estilo de vida com menos sobrecarga, para serem mais mães, mais domésticas e mais felizes. Afinal, diz a máxima, dinheiro não compra felicidade.
    É universalmente sabido que há pessoas felizes e infelizes de todas as faixas de renda, das mais abastadas às mais pobres. Mas esse não é o cerne da questão. Considerem os seguintes fatos:


- mulheres ganham menos que homens mesmo para exercer a mesma função, com a mesma carga horária tendo escolaridade igual ou superior


- a imensa maioria dos cargos de chefia são ocupados por homens
- mulheres têm mais dificuldade para obter promoções
- mulheres são a maioria dos desempregados
- mulheres são a maioria dos trabalhadores sem registro em carteira
- mulheres são a maioria dos trabalhadores terceirizados
- a quase totalidade do trabalho em regime de escravidão no mundo hoje é exercido por mulheres que são prostituídas de forma escrava, o restante são homens escravizados para serviços braçais
- meninas são incentivadas desde os primeiros anos a desenvolverem habilidades apenas nas carreiras menos promissoras: professora, babá, enfermeira, etc



     Quando uma mulher consegue vencer TODOS esses dados da realidade, elas o fazem sendo bombardeadas constantemente pelo mito de que assim elas vão ser "infelizes". Não podemos ter dinheiro, porque priorizar a carreira e não a família é egocêntrico, porque ficamos intimidadoras para os homens, porque assim vamos ficar solteiras, porque homens não gostam de se relacionar com mulheres que ganham mais (e se você fica com um cara que ganha menos é porque é interesseira), porque é impossível conciliar trabalho e maternidade, porque vamos nos arrepender se não tivermos filhos só quando já estivermos velhas demais para reverter a situação, porque... 


     porque os homens querem monopolizar o dinheiro do mundo. Afinal, no capitalismo tudo depende de quanto dinheiro você tem.
     A questão não é se o dinheiro "compra felicidade". A questão é que o dinheiro é a via de acesso à autonomia e a toda forma de poder na sociedade atual. Esta é uma sociedade que faz com que as muito poucas que conseguem ir mais longe acabem desistindo e concluindo que não vale a pena. É verdade que alcançar um posto de grande responsabilidade em uma empresa é extremamente trabalhoso e requer um investimento de tempo que vai fazer com que outros aspectos da vida fiquem preteridos.
     Mas não há uma mídia de massas fazendo os homens se sentirem culpados por serem pais ausentes; dizendo-lhes que eles precisam "encontrar um equilíbrio" entre família, lazer e trabalho; mandando-os repensar se é isso que eles "realmente querem" ou se, no fundo, estão apenas sendo competitivos demais; não há toneladas de mídia mandando os homens serem mais humanos, mais solidários, e pensarem mais no que "realmente importa" e no que "realmente traz felicidade".
     Aparentemente, se o que "realmente traz felicidade" são a família, o lazer e "as coisas simples", para a mídia de massas os homens podem continuar perfeitamente infelizes, contanto que continuem monopolizando a grana, não é? 



      Longe de mim condenar as escolhas de vida das mulheres que fizeram a opção de abandonar ou abrandar a carreira em troco de mais tempo livre. Inclusive porque estou mais preocupada com aquelas que não podem se dar a esse luxo - as que trabalham mais de 8 horas por dia inapelavelmente para ter o que comer, onde morar, como se medicar, como sustentar a prole. E as últimas são exploradas pelas primeiras - se eu tivesse que condená-las por alguma coisa, seria por isso. Alguém limpa a casa, em troca de um salário precário, enquanto as executivas galgam degraus na carreira, e esse alguém não é o marido.
     Porém, ainda considerando que a prioridade são as mulheres trabalhadoras, acredito que o que as revistas femininas têm a dizer sobre mulheres bem-sucedidas na carreira é algo que merece ser analisado e pensado pelo movimento feminista sim. Se o dinheiro não compra felicidade, certamente a discriminação nos postos de trabalho também não.


sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Combate à transmisoginia

[Versão para divulgação no Facebook]


    Levando em consideração os ataques cada vez mais frequentes, e violentos, de um grupo que se auto-intitula "transfeministas", gostaria de me posicionar publicamente a respeito de aspectos problemáticos do discurso de tais pessoas, pois sinto que há um recuo do movimento feminista, que não tem conseguido se posicionar a respeito, por medo de ser taxado erroneamente de "cissexista", "transfóbico" e assim por diante.
    Para começar, gostaria de recapitular alguns aspectos importantes do feminismo, que são básicos e que deveriam ser óbvios para todas, mas que por algum motivo não vêm sendo levados em consideração pelas transfeministas.
    Um fato histórico absolutamente inegável é que seres humanos que nascem com vaginas - e geralmente também com úteros, ovários e mamas - vêm sendo submetidos a toda forma de exploração, humilhação, cerceamento de liberdades, negação de direitos e outras formas de violência. Um outro fato a respeito dessas pessoas é que a elas é atribuído um gênero, isto é, um conjunto de estereótipos comportamentais esperados, aos quais elas têm que se submeter para serem minimamente aceitas pela sociedade. No entanto, por mais que tais pessoas rezem pela cartilha do "como ser mulher", isso não quer dizer que elas irão se ver livres de opressão, apenas que elas serão menos oprimidas do que seriam se fugissem à regra estabelecida de como é adequado se portar quando se é uma mulher. Uma mulher com um comportamento dito masculinizado é mais perseguida que uma mulher dentro do padrão que lhe foi imposto.
    Um terceiro fato que ninguém deveria colocar em questão é que o movimento feminista vem reivindicando desde os primórdios de sua própria existência que tais estereótipos comportamentais foram atribuídos a mulheres de forma arbitrária. As características, como jeito de falar, andar, se vestir, qualidades morais como delicadeza, vaidade, instinto de cuidado e proteção para com a prole e assim por diante são na verdade impostas de fora, não essenciais e inerentes à condição de mulher. A única coisa que todas as mulheres têm em comum é terem nascido com a capacidade de gerar filhos. Como disse Engels, a instituição do patriarcado começou quando os homens quiseram se certificar de que certas crianças eram filhos deles - porque nunca há ou haverá dúvida de quem é a mãe, e no entanto, a propriedade privada, para ser transmitida de pai para filho, precisa ter assegurado quem afinal de contas é filho de que pai. E para tanto, controlar a sexualidade das mulheres, restringindo-a a um único parceiro, é ponto fundamental. Aquelas que, embora dotadas de genitália feminina e que são no entanto estéreis sempre se viram na mais absoluta, indigna e imunda marginalidade.
    Com relação a quais comportamentos são esperados das mulheres, eles variaram imensamente ao longo dos séculos e ao redor das diferentes regiões. Às vezes se esperou força, às vezes fragilidade; às vezes vaidade e às vezes recato (ou "modéstia", como dizem @s muçulman@s); às vezes um comportamento expansivo e outras um introspectivo. O fato indiscutível é que, em todos os casos, uma vagina, uma suposta capacidade de reprodução e algumas características físicas secundárias, como menstruação e seios, foram centrais, basilares e indiscutíveis para determinar quem é oprimido por ser mulher e quem não é. 
    Desde um passado historicamente recente, algumas pessoas que nascem com genitália masculina
começaram a se reivindicar mulheres. Não houve qualquer abertura para que mulheres começassem a se reivindicar homens e, por tanto, deixarem de ser oprimidas por ser mulheres, embora abundem exemplos na História da humanidade daquelas que se passaram por homens para fugir de estupros, ocupar cargos de chefia, trabalhar em funções ditas masculinas, lutar em guerras e assim por diante. Muitas dessas mulheres foram mortas, presas, por vezes estupradas, outras tantas se suicidaram. No entanto, o ironicamente chamado trans "feminismo" em momento algum se ocupou de tais mulheres, nem muito menos daquel@s que nasceram com vaginas, úteros e ovários e não se reconhecem nos estereótipos femininos, se reivindicando, na verdade, homens.

    Os tais trans"feminsitas", pelo contrário, se ocupam exclusivamente do direito de homens se reivindicarem mulheres, se colocarem voluntariamente à margem do sistema de poder do qual homens usufruem e, ao invés, passarem a ser oprimidos por estarem fora do comportamento socialmente esperado dos homens (não por serem mulheres, afinal nenhum agressor de trans MTF os violenta na convicção de que são mulheres dignas de violência, mas na de que são homens transgressores do comportamento tido por adequado a homens). 
    Se eles parassem de reivindicar privilégios e começassem a reivindicar que todas as mulheres - inclusive... elas! - merecem direitos e deveres iguais aos de qualquer homem, não teríamos um problema aqui. Assim, mulheres feministas poderiam enxergar cada uma das transsexuais MTF como "uma de nós" - como mulheres que decidiram lutar pelos direitos das mulheres!
    Não é isso que tem sido observado. Os ditos trans"feminsitas" vêm, sistematicamente, atacando grupos feministas - e não os machistas -, com graus de hostilidade típicos de trolls masculinistas, e em seus discursos, vêm apontando que estão "errados" vários pressupostos básicos, elementares e definitivamente verídicos do movimento feminista. São eles:

- que o gênero feminino é uma construção histórica, arbitrária, violenta e com interesse político desinteressante para as próprias mulheres
- que o gênero feminino não nasce com a mulher, mas que é interiorizado por ela a partir de uma educação que visa inferiorizá-la.


    Por favor, releiam as linhas acima, porque cada palavra é importante. Tão importante que eu vou até repetir: trans"feministas", que na verdade são transmisóginos, vêm reivindicando que o gênero feminino não é historicamente construído e arbitrário, mas essencial e biológico; que exercê-lo não é violento, e sim um "privilégio" das mulheres "cis". Reivindicam ainda que algumas pessoas nascem com pintos e são, na verdade, nascidos mulheres, inerentemente mulheres, e que a resposta para tal fenômeno pode ser encontrada na biologia - por similaridades entre o cérebro, o sistema hormonal, ou o que quer que seja entre tais pessoas nascidas com pênis e mulheres nascidas com vaginas.
    Reivindicam, ainda, como se não bastasse, que mulheres "nunca têm a sua condição de mulher colocada em questão", como se não fôssemos vistas como "menos mulheres", sub mulheres, ou ainda como pessoas que não são "mulher de verdade" por qualquer comportamento desviante do padrão estabelecido para nós (e NÃO por nós). Não fomos nós que escolhemos que características são as ditas femininas, mas sim agressores que escolheram a dedo todas e cada uma das características que mulheres deveriam ter, porque tendo-as nos tornamos alvos mais fáceis para a violência.
    Reivindicar tudo isso nada mais é do que jogar na lata do lixo tudo o que o movimento feminista vem defendendo ao longo de gerações.
    Outros pontos problemáticos do discurso trans"feminista" é que, segundo eles, lhes ofende reivindicarmos que nossas vaginas não são nojentas, nem sujas, nem mais peludas do que deveriam; que lhes ofende falarmos de nossa menstruação e demais características, essas sim inerentes a todas aquelas que são oprimidas por serem mulheres, que vem sendo ao longo de 6 mil anos de existência de patriarcado judaico tidas como sujas, imundas, impuras, vêm ainda sendo satirizadas, e vêm sendo exposta de maneiras objetificantes e ofensivas.
     No espaço feminista, já não se pode mais falar em útero, em cólica, em menstruação, em ovulação, em clítoris, em mamas, em nada que seja DE FATO inerentemente feminino sem que se seja coagida a retirar que disse, sob pena de ser taxada de preconceituosa e discriminatória. Esse "cala a boca" que mulheres feministas têm sistematicamente recebido, quando tentam reivindicar a validade de seus próprios corpos, é uma tendência crescente e definitivamente perigosa, e é mais uma estratégia de silenciamento do patriarcado contra mulheres e sua autonomia diante de amar seus corpos.
      Tudo isso porque nós não os estaríamos "incluindo", porque afinal "nem todas as mulheres" teriam vaginas.
    O fato é que vestir roupas arbitrariamente atribuídas a mulheres não te faz mulher, e estamos reivindicando que transgredir normas de indumentária atribuídas a mulheres "não te faz menos mulher", quando se é de fato uma, desde muito antes da invenção da mini-saia. 
    Vestir roupas arbitrariamente atribuídas a mulheres não te faz mulher, ter seios grandes arbitrariamente atribuídos a mulheres - eu sou "cis" e não tenho - tampouco te faz mulher, adotar determinada maneira de gesticular e andar arbitrariamente atribuídas a mulheres tampouco te faz mulher; falar de determinada maneira arbitrariamente atribuída a mulheres não te faz mulher, ter nascido com uma predisposição a determinados comportamentos arbitrariamente atribuídos a mulheres, como preferir ser chamado por um nome dito feminino ou usar banheiros, idênticos aos masculinos, arbitrariamente atribuídos a mulheres também não te faz mulher. Isso é tão verdade quanto tudo o que feministas vêm historicamente dizendo há gerações sobre usar roupas ditas masculinas, brincar com brinquedos ditos masculinos, ter seios pequenos, ou a bunda pequena, falar palavrão, ter a voz mais grossa e assim por diante não te faz "menos mulher" ou te faz deixar de ser "mulher de verdade". Há uma imensa pressão, sumariamente ignorada pelos ditos trans"feministas", para que mulheres "cis" se comportem como "mulheres de verdade".
    Isso não quer dizer que o movimento feminista deva ser hostil a trans*, com o amplo espectro de possibilidades que essa palavra traz consigo, mas que para trans* serem de fato feministas, não podem ignorar preceitos básicos do movimento - como os nossos corpos, e mais ainda as partes específicas deles diretamente associadas com sermos mulheres, precisarem ser ressignificados e toda a nossa militância para que eles párem de ser vistos como sujos não deva incomodar a ninguém. Ou ainda o fato de o gênero feminino ser uma construção histórica, não e nunca um dado da natureza, um bloco de características inatas sobre as quais nada pode ser feito.
    Como o movimento das pessoas trans* pode ser feminista? Definitivamente não pelo caminho defendido pelos trans"feministas". Assim como, também, o movimento feminista pode ser inclusivo, respeitoso e acolhedor para pessoas trans*, mas por outro viés que não o defendido pelos transmisóginos, sob pena de se descaracterizar e deixar de ser feminista. 
    Agora vou falar sobre "o que fazer": como o movimento trans* pode ser feminista, e como o movimento feminista pode ser trans*-supporter.
    Coisas elementares sobre "identidade de gênero": há o sexo biológico, um dado da natureza comum a mamíferos e aves (mas não só) de todas as espécies, e há os gêneros, construções sociais forjadas para serem camisas-de-força a limitar comportamentos de pessoas nascidas com esse ou com aquele sexo biológico específico. Há o gênero violentamente imposto a mulheres, e o outro ensinado aos homens.
    Há, ainda, pessoas que nascem com um sexo e, por qualquer motivo, se identificam com o gênero "oposto" àquele ao qual foram ensinadas a pertencer desde o nascimento. Tais pessoas obviamente merecem todos os direitos, como acesso à saúde, educação, segurança e mercado de trabalho formal e digno, tanto quanto qualquer outro ser humano. 
    Há, também, pessoas que não se identificam com nenhum dos dois gêneros, e buscam transgredir as amarras e barreiras aos quais ambos os gêneros limitam as pessoas. Ao invés de comprarem um estereótipo comportamental dito masculino ou feminino, tais pessoas não têm gênero, ou comportam os dois gêneros, ou transitam entre os gêneros. Não ter um gênero significa não se deixar conformar por modelos comportamentais pré-estabelecidos, limitadores, castradores, ditatoriais, totalitaristas, eles sim inerentemente violentos e negativos, porque são formas de controle social, de padronização dos comportamentos e das mentalidades.
    Não ter um gênero quer dizer transcender, ir para além de amarras a roupas, gestos, andares, falares, gostos, nomes, banheiros, valores e assim por diante que compulsoriamente precisariam ser adotados para a aceitação social como mulher ou como homem. É não ter medo de ser quem se é, esteticamente e comportamentalmente, independente de ser "aceit@" como isso ou como aquilo pelas observadoras e observadores. 
    Isso é o que existe de mais genuína e profundamente feminista, progressista, vanguardista e emancipatório. É uma possibilidade de postura feminista por parte das pessoas trans*, para a qual o movimento feminista pode e deve dar todo o apoio, como é natural que seja, ainda que o próprio movimento feminista seja composto por pessoas atreladas a estereótipos de gênero.
    Uma outra possibilidade de feminismo por parte do movimento das pessoas trans* é que as trans* MTF reivindiquem que fazem a mais absoluta questão de não serem homens privilegiados por serem homens, mas de serem mulheres e socialmente reconhecidas como tais, que desejam direitos iguais para as mulheres (cis ou trans*), quando comparadas aos homens. Desejam que ser mulher não seja visto como um demérito e que, um dia, as pessoas superem a necessidade de se enquadrarem em estereótipos tão limitadores - algo que elas não estão em condições de fazer, já que compraram todo o conjunto de características atribuídas a mulheres, mas que tampouco as mulheres cis estão em condições de fazer. Logo, são dois grupos irmanados pela opressão dos estereótipos de gênero e pela luta, antes de mais nada, contra um decréscimo no direito das que hoje são mulheres porque lhes foi imposto, seja desde o nascimento ou não - trans* de um modo geral têm acordo que ser trans* não é uma escolha, mas feministas têm acordo que ser mulher não é biológico, logo poderíamos trabalhar com a hipótese de que somos todas obrigadas à feminilidade, mas podemos trabalhar por uma sociedade de seres humanos não necessariamente enquadrados em gêneros.
    Com relação a um feminismo das pessoas trans* FTM, creio que é uma questão muito sofisticada, e delicada, que pode ser melhor tratada em outro texto.
    Existe, ainda, a possibilidade de pessoas trans* não serem e não quererem ser feministas. De atacarem de maneira gratuita, grosseira e agressiva o movimento feminista, uma página depois da outra, um espaço de militância após o outro, e não serem feministas. E as feministas de bom senso, que sabem muito bem o que o movimento feminista é, não têm qualquer obrigação de aceitar tais pessoas no movimento, nem de se deixarem minar por tais ativistas, na prática e na verdade, anti-feministas - e ser anti-feminista é ser anti-mulher tanto quanto ser "pró-vida" é ser na verdade anti-mulher.
    Com relação a como o movimento feminista pode ser inclusivo com pessoas trans*. Trans* que não reivindicam nenhum gênero, ao invés de se atrelarem a um gênero tão limitador e inadequado quanto aquele ao qual supostamente estariam destinad@s quando nasceram, não precisam fazer qualquer esforço para serem aceitxs no movimento feminista. Isso porque são tão profunda, latente e obviamente feministas, que a possibilidade de não serem aceitxs no movimento feminista simplesmente inexiste. Meramente ser trans* de tal modo que transcende a necessidade de se designar como pertencente a esse ou aquele gênero já é, em si mesmx, o comportamento mais feminista que qualquer pessoa pode ter. Isso é no entanto de um vanguardismo ao alcance de poucxs. No entanto, MUITO IMPORTANTE, ser não-binarix não é um passe livre para cometer qualquer tipo de misoginia e ficar impune. Tod@s estamos sujeit@s a deslizes e deslizes vindos de pessoas não-binári@s não são menos graves e devem ser igualmente passíveis de punição.
    De resto, feministas podem e devem ser inclusivas e respeitosas às, aos e @(@)s trans* reivindicando que todas as cirurgias e demais tratamentos que el@s desejem estejam disponíveis no SUS e que @s profissionais da área médica sejam profundamente respeitos@s com pessoas trans*. Defendendo o acesso de trans* ao mercado de trabalho formal, a não discriminação nesse mercado e a todos os direitos de tais pessoas serem respeitados. Feministas também podem reivindicar o direito à vida e à segurança de pessoas trans*, pelo fim da violência, antes de mais nada física, contra tais pessoas. Feministas podem e devem defender a criminalização da transfobia, que está prevista na PLC-122. Feministas podem ainda se mobilizar para que casos específicos de crimes transfóbicos não fiquem impunes.
    O que feministas não devem fazer é reivindicar que homens possam imitar, caricaturando, mulheres. E que, fazendo isso, possam ser aceitos como mulheres. 
    Homens heterossexuais e brancos elegeram um determinado modelo de corpo feminino como padrão e modelo. Padrão é aquilo que se repete em série e modelo é um formato de referência a ser imitado por todxs. Tal corpo tem seios fartos, cintura fina, quadril largo, corpo sem pêlos e assim por diante. (Gosto de observar que toda mamífera e todo mamífero tem pêlos, até os marinhos.) Para aquelas que não se encaixam, restam os procedimentos cirúrgicos perigosos, invasivos e doloridos de auto-mutilação para se aproximar do padrão ou tornar-se mais próxima ao modelo/forma eleito como ideal. Isso é uma forma de controle das mentalidades e corpos femininos. Controle de mentalidade por induzir maciçamente a uma auto-estima baixa e nenhuma auto-aceitação como se é, sempre buscando um corpo “ideal” muito diferente do seu. E controle dos corpos pois os padroniza, fere, expõe ao risco de morte, impõe cicatrizes, medica, etc.
    Homens heterossexuais e brancos elegeram também um determinado modelo de indumentária feminina como padrão e modelo. Tal padrão passa por saias, saltos, maquiagem, etc. Cada um desses itens (e os outros não citados) pode ser destrinchado para mostrar o quão desinteressante é para as mulheres: o quanto as roupas femininas são desconfortáveis, os saltos prejudicam a coluna e a circulação, a maquiagem é um exercício diário de auto-negação dos próprios traços e assim por diante.
    Nenhum homem tem direito de se reivindicar mulher por imitar, de maneira caricatural e grosseira, os aspectos mais exteriores e superficiais do que seria “ser mulher”, ou melhor, ser uma mulher de comportamento e aspecto padrão no Ocidente contemporâneo. 

    A metade da população do mundo vem passando por, pelo menos, 6 mil anos de exploração, estupros sistemáticos, humilhação, privação de direitos, sobrecarga de deveres, violência psicológica, expoliação e rebaixamento. Nós não temos qualquer obrigação de nos deixar intimidar por seres humanos que nasceram designados para herdar todos os privilégios atribuídos a homens, foram educados para exercer tais privilégios, e querem ensinar às mulheres o que é uma mulher e como se luta pelos direitos femininos. A esse papel, eu, feminista e mulher "cis", me recuso.

    Me recuso porque, no dia em que nasci, já saí da maternidade com as orelhas mutiladas, perfuradas para introdução de um adereço que supostamente me deixaria mais "bonita", e desde então eu NUNCA, NUNCA tive nem a mais remota sombra de autonomia com relação ao meu corpo. Eu fui violentada, inclusive fisicamente, desde o meu primeiro dia até hoje, e tanto e de tal forma, que eu jamais vou superar, para um dia me olhar no espelho e poder me reivindicar qualquer outra coisa que não uma mulher. E ninguém, absolutamente ninguém que não passou pelo mesmo vai ME ensinar o que uma mulher é, porque eu sei profunda e completamente o que é ser uma mulher, desde que saí do útero da minha mãe. Comecei a ser ensinada na arte com menos de 12 horas de nascida. Sei até o fundo das minhas entranhas, entranhas que menstruam, entranhas com ovários, e ser mulher é uma condição imposta de forma violenta, condição imposta de fora. O dia que eu abdicar dessa convicção, não poderei ser chamada de feminista, e eu me recuso a abraçar a idéia, ou melhor a mentira, de que há pessoas que "nascem" mulheres, e ainda pior, que "nascem" mulheres com pintos, e que podem ser aceitas como tais porque mimetizam aspectos exteriores da feminilidade que foram impostos às fêmeas da espécie humana com o intuito de rebaixá-las.
    Como bem observou Montserrat Moreno em seu livro Como se ensina a ser menina, se ser mulher fosse biológico e natural, não seria necessário todo o aparato de ensino do gênero na família, na escola, na igreja... e vou além: todo o aparato de repressão àquelas e aqueles que não se adequam a tal proposta de ser e de parecer - a polícia, o hospício, a cadeia, etc.
     Além de me recusar a aceitar - e convido todas as feministas a fazerem o mesmo - que pessoas que nascem com pênis venham nos ensinar o que é uma mulher e por que motivo somos obrigadas a aceitá-los como "uma de nós", temos que nos recusar, ainda, que eles possam "cagar regra" no movimento feminista, dizendo às feministas como se deve lutar pelos direitos de mulheres de maneira a incluir a todas. 
    Ninguém que desde as suas primeiras horas de nascida foi vítima de violência por ser mulher tem qualquer obrigação de aceitar que alguém com potencial de te estuprar seja uma mulher. Ninguém que desde as suas primeiras horas de nascida foi vítima de violência por ser mulher tem qualquer obrigação de aceitar que alguém com um pênis fique despido diante de si sem achar isso violento, assustador, negativo ou repulsivo. Ninguém que desde as suas primeiras horas de nascida foi vítima de violência por ser mulher tem qualquer obrigação de aceitar que alguém nasce mulher. Ou que vira um monstro nojento, sujo, e deixa de ser "mulher de verdade" caso não se depile, a um ponto que chega a odiar os próprios pêlos, mas que alguém que nasceu com um pinto necessariamente tem que ser aceito como mulher sem depilação alguma.
    Ninguém que desde as suas primeiras horas de nascida foi vítima de violência por ser mulher tem qualquer obrigação de aceitar que pessoas que desde as suas primeiras horas de vida foram ensinadas ao privilégio, à arrogância e ao sentimento de superioridade venham lhe dizer que mulheres cis "nunca terão sua condição de mulher negada, diferente de mulheres trans". Isso é uma profunda mentira. Ninguém que desde as suas primeiras horas de nascida foi vítima de violência por ser mulher pode aceitar ser chamada de "privilegiada", porque por definição, privilegiados são aqueles que portam os aparelhos de poder de uma sociedade - o Estado, a Igreja, os bens de produção, a mídia de massas, os laboratórios de produção do conhecimento científico, os partidos políticos, as entidades de classe, os sindicatos, os hospícios, as cadeias, e sabemos de posse de quem estão tais espaços de poder. Estão em mãos brancas e heteromasculinas, o que faz das mulheres, necessariamente, não-privilegiadas por definição. 
    Alguém faltou à aula elementar de definição de opressão, por isso o parágrafo acima se fez necessário.
    Se mulheres "cis" expoliassem, violentassem, matassem, estuprassem "mulheres trans", e/ou acobertassem outras mulheres que fizessem o mesmo, mantendo um ciclo de violência e impunidade, poderíamos dizer que elas são "privilegiadas" com relação às "mulheres trans". No entanto, sabemos que quem o faz são homens, e que homens hetero são os beneficiários por uma sociedade excludente que maltrata pessoas trans* de qualquer ou de nenhum gênero (não apenas "mulheres trans"). O privilegiado é aquele que recebe o benefício pela exploração de outrem, e mulheres "cis" nunca foram beneficiárias da violência feita contra pessoas trans*, nem jamais chegarão a ser. Só uma parcela ínfima da população - que é branca, hetero e masculina - se beneficia das várias formas de opressão, e essa parcela é a proprietária dos meios de produção. Ignorar isso leva ao erro que os auto-intitulados trans"feministas" cometem: atacar as mulheres feministas, ao invés de se juntar a elas para atacar os homens no topo dos espaços de poder, onde são tomadas as decisões que nos oprimem a tod@s - mulheres, homens ou pessoas sem gênero, "cis" ou trans*. 
 

    Mulheres já vêm passando gerações demais sendo cobradas para serem "mulheres de verdade". Está mais do que na hora de nós dizermos em alto e bom som: nós, que historicamente estamos sendo oprimidas, expoliadas, hiper-exploradas e violentadas ao longo de séculos temos o direito de ter a palavra final sobre o que é ser uma "mulher de verdade". Temos o direito ainda de dizer se é desejável que exista uma sociedade segmentada entre mulheres e homens ou se, melhor que isso, é preferível que superemos essas categorias limitadas e limitadoras. E ninguém que tem um pênis potencialmente violento vai nos dizer se é uma mulher ou não, se estamos sendo preconceituosas ou não, se estamos sendo inclusivas ou não, ou ainda se estamos sendo feministas o bastante ou não.
    Essa prerrogativa não nos pode ser tirada sob risco de o movimento feminista ser engolido, solapado e desvirtuado por homens com péssimas intenções, como por exemplo os masculinistas, amigos e aliados das auto-intituladas trans"feminsitas", que vêm aparecendo para defendê-las em debates públicos nos quais os posicionamentos mais anti-feministas vem sendo reivindicados, sob o argumento de que quem discorda deles ser "transfóbico". Esse é um medo que precisamos perder para não nos deixarmos ter elementos essenciais e basilares do movimento serem deslegitimados.
    Por fim, reconheço que por mais de uma definição de transfobia, eu e este texto podemos ser consideradxs "transfóbicos". No entanto, entre feminista e trans-supporter, eu faço questão de ser feminista, e creio que a definição de alguns do que é não ser transfóbica é necessariamente machista. Repito: se para não ser transfóbica eu preciso abdicar de preceitos basilares do feminismo, e portanto não ser feminista, eu opto por ser “transfóbica”, a partir dessa definição de transfobia polêmica e nada consensual entre @s própri@s pessoas trans*.
    Repito, também, o que eu considero uma feminista que não é transfóbica e o que o movimento feminista deve fazer para não o ser: defender os direitos das pessoas trans* à saúde, à segurança, ao mercado de trabalho formal e em condições dignas, ao tratamento respeitoso, para além da criminalização da transfobia e pelo fim da impunidade nos casos em que ela é praticada. Eu defendo cada uma dessas coisas, e reivindico que o movimento feminista as defenda também.
    Mas não defendo que pessoas nascidas destinadas a todos os privilégios que o heteropatriarcado reserva a homens tentem ensinar às mulheres o que é ser mulher e às feministas o que é ser feminista inclusiva e respeitosa a todas as mulheres. Não defendo também que homens se sintam no direito de imitar esse ou aquele comportamento dito feminino e que, apenas com a auto-declaração, tenham que ser necessariamente aceitos como mulheres. Isso é tão absurdo, despropositado e violento quanto uma mulher branca fazer 10 sessões de bronzeamento artificial e passar a se reivindicar negra, e ainda querer se reivindicar oprimida por ser negra, para além de querer ter direitos de pessoas negras, como cotas nas universidades e ganhar causas ao processar pessoas por serem racistas com ela. Não vão ser cirurgias plásticas e injeções de hormônios que vão mudar a condição de homens de muitos dos que, se dizendo trans"feministas", estão na verdade cometendo uma das maiores violências já feitas contra o movimento feminista na história desse movimento social: dizer às mulheres que redefinam a própria definição que têm do que é ser uma mulher, aceitem estupradores em potencial em seus espaços de militância, recusem a reconhecer que são desprivilegiadas e recusem a reconhecer que têm a própria feminilidade negada dependendo de comportamentos que adotam. Não satisfeitos, eles estão, ainda, atacando de maneira organizada, repetida e extremamente agressiva espaços de militância feminista e, pior, rachando o movimento feminista por dentro.
    Este texto vai ser amplamente divulgado e deixado aberto para debates. Tenho poucas esperanças de que não vai ser associado à minha pessoa, embora vá ser inicialmente postado como anônimo, e peço às feministas que, concordando ou não com o texto, lembrem-se do nosso "mexeu com uma mexeu com todas", pois temo pela minha segurança, uma vez que já estão constatadas as relações entre os transmisóginos e o movimento masculinista, inclusive a parte mais violenta dele.
 

    Peço desculpas pela minha dificuldade de me expressar de maneira mais clara e menos elitizada, mas esse problema pode ser menos grave por este ser um debate tão vanguardista. Peço também às feministas que concordem, ainda que parcialmente, com esse texto: por favor, procurem criar coragem de posicionar isso publicamente. Posicionem publicamente os seus acordos tanto quanto vão publicizar as suas discordâncias.
    Peço desculpas, por fim, às transsexuais MTF que não integram nem simpatizam com o grupo chamado "transfeministas" por qualquer transfobia que eu tenha manifestado neste texto. Quero dizer que, por menos que pareça, acreditem, eu estou aberta a sugestões de como aprimorar este discurso para que ele possa ser o menos transfóbico que for possível, sem que no entanto se descaracterize enquanto feminista. 
    Gostaria de pedir, ainda, que os auto-intitulados trans"feministas" reconheçam a própria misoginia, e quer continuem se reivindicando mulheres quer não, possam reconhecer ao menos que não são feministas, dada toda a hostilidade ao movimento feminista e às prerrogativas dele que vem sendo demonstrada ao longo dos últimos meses. Lembrando que ao menos um deles já disse, no passado, que não é feminista coisa nenhuma, o que é inclusive bem pouco surpreendente.
    Como um último pedido, peço para que este texto seja visibilizado, inclusive pelxs que discordam dele, pois eu acredito que pode render debates produtivos, caso as pessoas a quem ele interessa possam tomar conhecimento de seu conteúdo.
    A princípio, não tenho intenção de responder a comentários, pelo imenso desgaste emocional que isso gera e pela indisponibilidade de tempo, mas conforme as coisas caminharem, tal pode ser repensado, ou posso ainda publicar um segundo texto contendo uma síntese do que aprendi e aprimorei com os comentários recebidos e lidos.
    Por um feminismo unitário, que supere a fragmentação que os transmisóginos vêm promovendo, peço a paciência de todas na condução de um debate tão delicado.
    Com o maior respeito que me senti capaz de empregar, e esperanças sinceras de mudanças para melhor, encerro, por hora anônima.
 
 
 

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Combate à transmisoginia



    Levando em consideração os ataques cada vez mais frequentes, e violentos, de um grupo que se auto-intitula "transfeministas", gostaria de me posicionar publicamente a respeito de aspectos problemáticos do discurso de tais pessoas, pois sinto que há um recuo do movimento feminista, que não tem conseguido se posicionar a respeito, por medo de ser taxado erroneamente de "cissexista", "transfóbico" e assim por diante.
    Para começar, gostaria de recapitular alguns aspectos importantes do feminismo, que são básicos e que deveriam ser óbvios para todas, mas que por algum motivo não vêm sendo levados em consideração pelas transfeministas.
    Um fato histórico absolutamente inegável é que seres humanos que nascem com vaginas - e geralmente também com úteros, ovários e mamas - vêm sendo submetidos a toda forma de exploração, humilhação, cerceamento de liberdades, negação de direitos e outras formas de violência. Um outro fato a respeito dessas pessoas é que a elas é atribuído um gênero, isto é, um conjunto de estereótipos comportamentais esperados, aos quais elas têm que se submeter para serem minimamente aceitas pela sociedade. No entanto, por mais que tais pessoas rezem pela cartilha do "como ser mulher", isso não quer dizer que elas irão se ver livres de opressão, apenas que elas serão menos oprimidas do que seriam se fugissem à regra estabelecida de como é adequado se portar quando se é uma mulher. Uma mulher com um comportamento dito masculinizado é mais perseguida que uma mulher dentro do padrão que lhe foi imposto.
    Um terceiro fato que ninguém deveria colocar em questão é que o movimento feminista vem reivindicando desde os primórdios de sua própria existência que tais estereótipos comportamentais foram atribuídos a mulheres de forma arbitrária. As características, como jeito de falar, andar, se vestir, qualidades morais como delicadeza, vaidade, instinto de cuidado e proteção para com a prole e assim por diante são na verdade impostas de fora, não essenciais e inerentes à condição de mulher. A única coisa que todas as mulheres têm em comum é terem nascido com a capacidade de gerar filhos. Como disse Engels, a instituição do patriarcado começou quando os homens quiseram se certificar de que certas crianças eram filhos deles - porque nunca há ou haverá dúvida de quem é a mãe, e no entanto, a propriedade privada, para ser transmitida de pai para filho, precisa ter assegurado quem afinal de contas é filho de que pai. E para tanto, controlar a sexualidade das mulheres, restringindo-a a um único parceiro, é ponto fundamental. Aquelas que, embora dotadas de genitália feminina e que são no entanto estéreis sempre se viram na mais absoluta, indigna e imunda marginalidade.
    Com relação a quais comportamentos são esperados das mulheres, eles variaram imensamente ao longo dos séculos e ao redor das diferentes regiões. Às vezes se esperou força, às vezes fragilidade; às vezes vaidade e às vezes recato (ou "modéstia", como dizem @s muçulman@s); às vezes um comportamento expansivo e outras um introspectivo. O fato indiscutível é que, em todos os casos, uma vagina, uma suposta capacidade de reprodução e algumas características físicas secundárias, como menstruação e seios, foram centrais, basilares e indiscutíveis para determinar quem é oprimido por ser mulher e quem não é.
    Desde um passado historicamente recente, algumas pessoas que nascem com genitália masculina começaram a se reivindicar mulheres. Não houve qualquer abertura para que mulheres começassem a se reivindicar homens e, por tanto, deixarem de ser oprimidas por ser mulheres, embora abundem exemplos na História da humanidade daquelas que se passaram por homens para fugir de estupros, ocupar cargos de chefia, trabalhar em funções ditas masculinas, lutar em guerras e assim por diante. Muitas dessas mulheres foram mortas, presas, por vezes estupradas, outras tantas se suicidaram. No entanto, o ironicamente chamado trans "feminismo" em momento algum se ocupou de tais mulheres, nem muito menos daquel@s que nasceram com vaginas, úteros e ovários e não se reconhecem nos estereótipos femininos, se reivindicando, na verdade, homens.
    Os tais trans"feminsitas", pelo contrário, se ocupam exclusivamente do direito de homens se reivindicarem mulheres, se colocarem voluntariamente à margem do sistema de poder do qual homens usufruem e, ao invés, passarem a ser oprimidos por estarem fora do comportamento socialmente esperado dos homens (não por serem mulheres, afinal nenhum agressor de trans MTF os violenta na convicção de que são mulheres dignas de violência, mas na de que são homens transgressores do comportamento tido por adequado a homens).
    Se eles parassem de reivindicar privilégios e começassem a reivindicar que todas as mulheres - inclusive... elas! - merecem direitos e deveres iguais aos de qualquer homem, não teríamos um problema aqui. Assim, mulheres feministas poderiam enxergar cada uma das transsexuais MTF como "uma de nós" - como mulheres que decidiram lutar pelos direitos das mulheres!
    Não é isso que tem sido observado. Os ditos trans"feminsitas" vêm, sistematicamente, atacando grupos feministas - e não os machistas -, com graus de hostilidade típicos de trolls masculinistas, e em seus discursos, vêm apontando que estão "errados" vários pressupostos básicos, elementares e definitivamente verídicos do movimento feminista. São eles:

- que o gênero feminino é uma construção histórica, arbitrária, violenta e com interesse político desinteressante para as próprias mulheres
- que o gênero feminino não nasce com a mulher, mas que é interiorizado por ela a partir de uma educação que visa inferiorizá-la.


    Por favor, releiam as linhas acima, porque cada palavra é importante. Tão importante que eu vou até repetir: trans"feministas", que na verdade são transmisóginos, vêm reivindicando que o gênero feminino não é historicamente construído e arbitrário, mas essencial e biológico; que exercê-lo não é violento, e sim um "privilégio" das mulheres "cis". Reivindicam ainda que algumas pessoas nascem com pintos e são, na verdade, nascidos mulheres, inerentemente mulheres, e que a resposta para tal fenômeno pode ser encontrada na biologia - por similaridades entre o cérebro, o sistema hormonal, ou o que quer que seja entre tais pessoas nascidas com pênis e mulheres nascidas com vaginas.
    Reivindicam, ainda, como se não bastasse, que mulheres "nunca têm a sua condição de mulher colocada em questão", como se não fossemos vistas como "menos mulheres", sub mulheres, ou ainda como pessoas que não são "mulher de verdade" por qualquer comportamento desviante do padrão estabelecido para nós (e NÃO por nós). Não fomos nós que escolhemos que características são as ditas femininas, mas sim agressores que escolheram a dedo todas e cada uma das características que mulheres deveriam ter, porque tendo-as nos tornamos alvos mais fáceis para a violência.
    Reivindicar tudo isso nada mais é do que jogar na lata do lixo tudo o que o movimento feminista vem defendendo ao longo de gerações.
    Outros pontos problemáticos do discurso trans"feminista" é que, segundo eles, lhes ofende reivindicarmos que nossas vaginas não são nojentas, nem sujas, nem mais peludas do que deveriam; que lhes ofende falarmos de nossa menstruação e demais características, essas sim inerentes a todas aquelas que são oprimidas por serem mulheres, que vem sendo ao longo de 6 mil anos de existência de patriarcado judaico tidas como sujas, imundas, impuras, vêm ainda sendo satirizadas, e vêm sendo exposta de maneiras objetificantes e ofensivas.
     No espaço feminista, já não se pode mais falar em útero, em cólica, em menstruação, em ovulação, em clítoris, em mamas, em nada que seja DE FATO inerentemente feminino sem que se seja coagida a retirar que disse, sob pena de ser taxada de preconceituosa e discriminatória. Esse "cala a boca" que mulheres feministas têm sistematicamente recebido, quando tentam reivindicar a validade de seus próprios corpos, é uma tendência crescente e definitivamente perigosa, e é mais uma estratégia de silenciamento do patriarcado contra mulheres e sua autonomia diante de amar seus corpos.
    Tudo isso porque nós não os estaríamos "incluindo", porque afinal "nem todas as mulheres" teriam vaginas.
    O fato é que vestir roupas arbitrariamente atribuídas a mulheres não te faz mulher, e estamos reivindicando que transgredir normas de indumentária atribuídas a mulheres "não te faz menos mulher", quando se é de fato uma, desde muito antes da invenção da mini-saia.
    Vestir roupas arbitrariamente atribuídas a mulheres não te faz mulher, ter seios grandes arbitrariamente atribuídos a mulheres - eu sou "cis" e não tenho - tampouco te faz mulher, adotar determinada maneira de gesticular e andar arbitrariamente atribuídas a mulheres tampouco te faz mulher; falar de determinada maneira arbitrariamente atribuída a mulheres não te faz mulher, ter nascido com uma predisposição a determinados comportamentos arbitrariamente atribuídos a mulheres, como preferir ser chamado por um nome dito feminino ou usar banheiros, idênticos aos masculinos, arbitrariamente atribuídos a mulheres também não te faz mulher. Isso é tão verdade quanto tudo o que feministas vêm historicamente dizendo há gerações sobre usar roupas ditas masculinas, brincar com brinquedos ditos masculinos, ter seios pequenos, ou a bunda pequena, falar palavrão, ter a voz mais grossa e assim por diante não te faz "menos mulher" ou te faz deixar de ser "mulher de verdade". Há uma imensa pressão, sumariamente ignorada pelos ditos trans"feministas", para que mulheres "cis" se comportem como "mulheres de verdade".
    Isso não quer dizer que o movimento feminista deva ser hostil a trans*, com o amplo espectro de possibilidades que essa palavra traz consigo, mas que para trans* serem de fato feministas, não podem ignorar preceitos básicos do movimento - como os nossos corpos, e mais ainda as partes específicas deles diretamente associadas com sermos mulheres, precisarem ser ressignificados e toda a nossa militância para que eles parem de ser vistos como sujos não deva incomodar a ninguém. Ou ainda o fato de o gênero feminino ser uma construção histórica, não e nunca um dado da natureza, um bloco de características inatas sobre as quais nada pode ser feito.
    Como o movimento das pessoas trans* pode ser feminista? Definitivamente não pelo caminho defendido pelos trans"feministas". Assim como, também, o movimento feminista pode ser inclusivo, respeitoso e acolhedor para pessoas trans*, mas por outro viés que não o defendido pelos transmisóginos, sob pena de se descaracterizar e deixar de ser feminista.
    Agora vou falar sobre "o que fazer": como o movimento trans* pode ser feminista, e como o movimento feminista pode ser trans*-supporter.
    Coisas elementares sobre "identidade de gênero": há o sexo biológico, um dado da natureza comum a mamíferos e aves (mas não só) de todas as espécies, e há os gêneros, construções sociais forjadas para serem camisas-de-força a limitar comportamentos de pessoas nascidas com esse ou com aquele sexo biológico específico. Há o gênero violentamente imposto a mulheres, e o outro ensinado aos homens.
    Há, ainda, pessoas que nascem com um sexo e, por qualquer motivo, se identificam com o gênero "oposto" àquele ao qual foram ensinadas a pertencer desde o nascimento. Tais pessoas obviamente merecem todos os direitos, como acesso à saúde, educação, segurança e mercado de trabalho formal e digno, tanto quanto qualquer outro ser humano.
    Há, também, pessoas que não se identificam com nenhum dos dois gêneros, e buscam transgredir as amarras e barreiras aos quais ambos os gêneros limitam as pessoas. Ao invés de comprarem um estereótipo comportamental dito masculino ou feminino, tais pessoas não têm gênero, ou comportam os dois gêneros, ou transitam entre os gêneros. Não ter um gênero significa não se deixar conformar por modelos comportamentais pré-estabelecidos, limitadores, castradores, ditatoriais, totalitaristas, eles sim inerentemente violentos e negativos, porque são formas de controle social, de padronização dos comportamentos e das mentalidades.
    Não ter um gênero quer dizer transcender, ir para além de amarras a roupas, gestos, andares, falares, gostos, nomes, banheiros, valores e assim por diante que compulsoriamente precisariam ser adotados para a aceitação social como mulher ou como homem. É não ter medo de ser quem se é, esteticamente e comportamentalmente, independente de ser "aceit@" como isso ou como aquilo pelas observadoras e observadores.
    Isso é o que existe de mais genuína e profundamente feminista, progressista, vanguardista e emancipatório. É uma possibilidade de postura feminista por parte das pessoas trans*, para a qual o movimento feminista pode e deve dar todo o apoio, como é natural que seja, ainda que o próprio movimento feminista seja composto por pessoas atreladas a estereótipos de gênero.
    Uma outra possibilidade de feminismo por parte do movimento das pessoas trans* é que as trans* MTF reivindiquem que fazem a mais absoluta questão de não serem homens privilegiados por serem homens, mas de serem mulheres e socialmente reconhecidas como tais, que desejam direitos iguais para as mulheres (cis ou trans*), quando comparadas aos homens. Desejam que ser mulher não seja visto como um demérito e que, um dia, as pessoas superem a necessidade de se enquadrarem em estereótipos tão limitadores - algo que elas não estão em condições de fazer, já que compraram todo o conjunto de características atribuídas a mulheres, mas que tampouco as mulheres cis estão em condições de fazer. Logo, são dois grupos irmanados pela opressão dos estereótipos de gênero e pela luta, antes de mais nada, contra um decréscimo no direito das que hoje são mulheres porque lhes foi imposto, seja desde o nascimento ou não - trans* de um modo geral têm acordo que ser trans* não é uma escolha, mas feministas têm acordo que ser mulher não é biológico, logo poderíamos trabalhar com a hipótese de que somos todas obrigadas à feminilidade, mas podemos trabalhar por uma sociedade de seres humanos não necessariamente enquadrados em gêneros.
    Com relação a um feminismo das pessoas trans* FTM, creio que é uma questão muito sofisticada, e delicada, que pode ser melhor tratada em outro texto.
    Existe, ainda, a possibilidade de pessoas trans* não serem e não quererem ser feministas. De atacarem de maneira gratuita, grosseira e agressiva o movimento feminista, uma página depois da outra, um espaço de militância após o outro, e não serem feministas. E as feministas de bom senso, que sabem muito bem o que o movimento feminista é, não têm qualquer obrigação de aceitar tais pessoas no movimento, nem de se deixarem minar por tais ativistas, na prática e na verdade, anti-feministas - e ser anti-feminista é ser anti-mulher tanto quanto ser "pró-vida" é ser na verdade anti-mulher.
    Com relação a como o movimento feminista pode ser inclusivo com pessoas trans*. Trans* que não reivindicam nenhum gênero, ao invés de se atrelarem a um gênero tão limitador e inadequado quanto aquele ao qual supostamente estariam destinad@s quando nasceram, não precisam fazer qualquer esforço para serem aceitxs no movimento feminista. Isso porque são tão profunda, latente e obviamente feministas, que a possibilidade de não serem aceitxs no movimento feminista simplesmente inexiste. Meramente ser trans* de tal modo que transcende a necessidade de se designar como pertencente a esse ou aquele gênero já é, em si mesmx, o comportamento mais feminista que qualquer pessoa pode ter. Isso é no entanto de um vanguardismo ao alcance de poucxs. No entanto, MUITO IMPORTANTE, ser não-binarix não é um passe livre para cometer qualquer tipo de misoginia e ficar impune. Tod@s estamos sujeit@s a deslizes e deslizes vindos de pessoas não-binári@s não são menos graves e devem ser igualmente passíveis de punição.
    De resto, feministas podem e devem ser inclusivas e respeitosas às, aos e @(@)s trans* reivindicando que todas as cirurgias e demais tratamentos que el@s desejem estejam disponíveis no SUS e que @s profissionais da área médica sejam profundamente respeitos@s com pessoas trans*. Defendendo o acesso de trans* ao mercado de trabalho formal, a não discriminação nesse mercado e a todos os direitos de tais pessoas serem respeitados. Feministas também podem reivindicar o direito à vida e à segurança de pessoas trans*, pelo fim da violência, antes de mais nada física, contra tais pessoas. Feministas podem e devem defender a criminalização da transfobia, que está prevista na PLC-122. Feministas podem ainda se mobilizar para que casos específicos de crimes transfóbicos não fiquem impunes.
    O que feministas não devem fazer é reivindicar que homens possam imitar, caricaturando, mulheres. E que, fazendo isso, possam ser aceitos como mulheres.
    Homens heterossexuais e brancos elegeram um determinado modelo de corpo feminino como padrão e modelo. Padrão é aquilo que se repete em série e modelo é um formato de referência a ser imitado por todxs. Tal corpo tem seios fartos, cintura fina, quadril largo, corpo sem pêlos e assim por diante. (Gosto de observar que toda mamífera e todo mamífero tem pêlos, até os marinhos.) Para aquelas que não se encaixam, restam os procedimentos cirúrgicos perigosos, invasivos e doloridos de auto-mutilação para se aproximar do padrão ou tornar-se mais próxima ao modelo/forma eleito como ideal. Isso é uma forma de controle das mentalidades e corpos femininos. Controle de mentalidade por induzir maciçamente a uma auto-estima baixa e nenhuma auto-aceitação como se é, sempre buscando um corpo “ideal” muito diferente do seu. E controle dos corpos pois os padroniza, fere, expõe ao risco de morte, impõe cicatrizes, medica, etc.
    Homens heterossexuais e brancos elegeram também um determinado modelo de indumentária feminina como padrão e modelo. Tal padrão passa por saias, saltos, maquiagem, etc. Cada um desses itens (e os outros não citados) pode ser destrinchado para mostrar o quão desinteressante é para as mulheres: o quanto as roupas femininas são desconfortáveis, os saltos prejudicam a coluna e a circulação, a maquiagem é um exercício diário de auto-negação dos próprios traços e assim por diante.
    Nenhum homem tem direito de se reivindicar mulher por imitar, de maneira caricatural e grosseira, os aspectos mais exteriores e superficiais do que seria “ser mulher”, ou melhor, ser uma mulher de comportamento e aspecto padrão no Ocidente contemporâneo.
    A metade da população do mundo vem passando por, pelo menos, 6 mil anos de exploração, estupros sistemáticos, humilhação, privação de direitos, sobrecarga de deveres, violência psicológica, espoliação e rebaixamento. Nós não temos qualquer obrigação de nos deixar intimidar por seres humanos que nasceram designados para herdar todos os privilégios atribuídos a homens, foram educados para exercer tais privilégios, e querem ensinar às mulheres o que é uma mulher e como se luta pelos direitos femininos. A esse papel, eu, feminista e mulher "cis", me recuso.
    Me recuso porque, no dia em que nasci, já saí da maternidade com as orelhas mutiladas, perfuradas para introdução de um adereço que supostamente me deixaria mais "bonita", e desde então eu NUNCA, NUNCA tive nem a mais remota sombra de autonomia com relação ao meu corpo. Eu fui violentada, inclusive fisicamente, desde o meu primeiro dia até hoje, e tanto e de tal forma, que eu jamais vou superar, para um dia me olhar no espelho e poder me reivindicar qualquer outra coisa que não uma mulher. E ninguém, absolutamente ninguém que não passou pelo mesmo vai ME ensinar o que uma mulher é, porque eu sei profunda e completamente o que é ser uma mulher, desde que saí do útero da minha mãe. Comecei a ser ensinada na arte com menos de 12 horas de nascida. Sei até o fundo das minhas entranhas, entranhas que menstruam, entranhas com ovários, e ser mulher é uma condição imposta de forma violenta, condição imposta de fora. O dia que eu abdicar dessa convicção, não poderei ser chamada de feminista, e eu me recuso a abraçar a idéia, ou melhor a mentira, de que há pessoas que "nascem" mulheres, e ainda pior, que "nascem" mulheres com pintos, e que podem ser aceitas como tais porque mimetizam aspectos exteriores da feminilidade que foram impostos às fêmeas da espécie humana com o intuito de rebaixá-las.
    Como bem observou Montserrat Moreno em seu livro Como se ensina a ser menina, se ser mulher fosse biológico e natural, não seria necessário todo o aparato de ensino do gênero na família, na escola, na igreja... e vou além: todo o aparato de repressão àquelas e aqueles que não se adequam a tal proposta de ser e de parecer - a polícia, o hospício, a cadeia, etc.
     Além de me recusar a aceitar - e convido todas as feministas a fazerem o mesmo - que pessoas que nascem com pênis venham nos ensinar o que é uma mulher e por que motivo somos obrigadas a aceitá-los como "uma de nós", temos que nos recusar, ainda, que eles possam "cagar regra" no movimento feminista, dizendo às feministas como se deve lutar pelos direitos de mulheres de maneira a incluir a todas.
    Ninguém que desde as suas primeiras horas de nascida foi vítima de violência por ser mulher tem qualquer obrigação de aceitar que alguém com potencial de te estuprar seja uma mulher. Ninguém que desde as suas primeiras horas de nascida foi vítima de violência por ser mulher tem qualquer obrigação de aceitar que alguém com um pênis fique despido diante de si sem achar isso violento, assustador, negativo ou repulsivo. Ninguém que desde as suas primeiras horas de nascida foi vítima de violência por ser mulher tem qualquer obrigação de aceitar que alguém nasce mulher. Ou que vira um monstro nojento, sujo, e deixa de ser "mulher de verdade" caso não se depile, a um ponto que chega a odiar os próprios pêlos, mas que alguém que nasceu com um pinto necessariamente tem que ser aceito como mulher sem depilação alguma.
    Ninguém que desde as suas primeiras horas de nascida foi vítima de violência por ser mulher tem qualquer obrigação de aceitar que pessoas que desde as suas primeiras horas de vida foram ensinadas ao privilégio, à arrogância e ao sentimento de superioridade venham lhe dizer que mulheres cis "nunca terão sua condição de mulher negada, diferente de mulheres trans". Isso é uma profunda mentira. Ninguém que desde as suas primeiras horas de nascida foi vítima de violência por ser mulher pode aceitar ser chamada de "privilegiada", porque por definição, privilegiados são aqueles que portam os aparelhos de poder de uma sociedade - o Estado, a Igreja, os bens de produção, a mídia de massas, os laboratórios de produção do conhecimento científico, os partidos políticos, as entidades de classe, os sindicatos, os hospícios, as cadeias, e sabemos de posse de quem estão tais espaços de poder. Estão em mãos brancas e heteromasculinas, o que faz das mulheres, necessariamente, não-privilegiadas por definição.
    Alguém faltou à aula elementar de definição de opressão, por isso o parágrafo acima se fez necessário.
    Se mulheres "cis" espoliassem, violentassem, matassem, estuprassem "mulheres trans", e/ou acobertassem outras mulheres que fizessem o mesmo, mantendo um ciclo de violência e impunidade, poderíamos dizer que elas são "privilegiadas" com relação às "mulheres trans". No entanto, sabemos que quem o faz são homens, e que homens hetero são os beneficiários por uma sociedade excludente que maltrata pessoas trans* de qualquer ou de nenhum gênero (não apenas "mulheres trans"). O privilegiado é aquele que recebe o benefício pela exploração de outrem, e mulheres "cis" nunca foram beneficiárias da violência feita contra pessoas trans*, nem jamais chegarão a ser. Só uma parcela ínfima da população - que é branca, hetero e masculina - se beneficia das várias formas de opressão, e essa parcela é a proprietária dos meios de produção. Ignorar isso leva ao erro que os auto-intitulados trans"feministas" cometem: atacar as mulheres feministas, ao invés de se juntar a elas para atacar os homens no topo dos espaços de poder, onde são tomadas as decisões que nos oprimem a tod@s - mulheres, homens ou pessoas sem gênero, "cis" ou trans*.
    Mulheres já vêm passando gerações demais sendo cobradas para serem "mulheres de verdade". Está mais do que na hora de nós dizermos em alto e bom som: nós, que historicamente estamos sendo oprimidas, espoliadas, hiper-exploradas e violentadas ao longo de séculos temos o direito de ter a palavra final sobre o que é ser uma "mulher de verdade". Temos o direito ainda de dizer se é desejável que exista uma sociedade segmentada entre mulheres e homens ou se, melhor que isso, é preferível que superemos essas categorias limitadas e limitadoras. E ninguém que tem um pênis potencialmente violento vai nos dizer se é uma mulher ou não, se estamos sendo preconceituosas ou não, se estamos sendo inclusivas ou não, ou ainda se estamos sendo feministas o bastante ou não.
    Essa prerrogativa não nos pode ser tirada sob risco de o movimento feminista ser engolido, solapado e desvirtuado por homens com péssimas intenções, como por exemplo os masculinistas, amigos e aliados das auto-intituladas trans"feminsitas", que vêm aparecendo para defendê-las em debates públicos nos quais os posicionamentos mais anti-feministas vem sendo reivindicados, sob o argumento de que quem discorda deles ser "transfóbico". Esse é um medo que precisamos perder para não nos deixarmos ter elementos essenciais e basilares do movimento serem deslegitimados.
    Por fim, reconheço que por mais de uma definição de transfobia, eu e este texto podemos ser consideradxs "transfóbicos". No entanto, entre feminista e trans-supporter, eu faço questão de ser feminista, e creio que a definição de alguns do que é não ser transfóbica é necessariamente machista. Repito: se para não ser transfóbica eu preciso abdicar de preceitos basilares do feminismo, e portanto não ser feminista, eu opto por ser “transfóbica”, a partir dessa definição de transfobia polêmica e nada consensual entre @s própri@s pessoas trans*.
    Repito, também, o que eu considero uma feminista que não é transfóbica e o que o movimento feminista deve fazer para não o ser: defender os direitos das pessoas trans* à saúde, à segurança, ao mercado de trabalho formal e em condições dignas, ao tratamento respeitoso, para além da criminalização da transfobia e pelo fim da impunidade nos casos em que ela é praticada. Eu defendo cada uma dessas coisas, e reivindico que o movimento feminista as defenda também.
    Mas não defendo que pessoas nascidas destinadas a todos os privilégios que o heteropatriarcado reserva a homens tentem ensinar às mulheres o que é ser mulher e às feministas o que é ser feminista inclusiva e respeitosa a todas as mulheres. Não defendo também que homens se sintam no direito de imitar esse ou aquele comportamento dito feminino e que, apenas com a auto-declaração, tenham que ser necessariamente aceitos como mulheres. Isso é tão absurdo, despropositado e violento quanto uma mulher branca fazer 10 sessões de bronzeamento artificial e passar a se reivindicar negra, e ainda querer se reivindicar oprimida por ser negra, para além de querer ter direitos de pessoas negras, como cotas nas universidades e ganhar causas ao processar pessoas por serem racistas com ela. Não vão ser cirurgias plásticas e injeções de hormônios que vão mudar a condição de homens de muitos dos que, se dizendo trans"feministas", estão na verdade cometendo uma das maiores violências já feitas contra o movimento feminista na história desse movimento social: dizer às mulheres que redefinam a própria definição que têm do que é ser uma mulher, aceitem estupradores em potencial em seus espaços de militância, recusem a reconhecer que são desprivilegiadas e recusem a reconhecer que têm a própria feminilidade negada dependendo de comportamentos que adotam. Não satisfeitos, eles estão, ainda, atacando de maneira organizada, repetida e extremamente agressiva espaços de militância feminista e, pior, rachando o movimento feminista por dentro.
    Este texto vai ser amplamente divulgado e deixado aberto para debates. Tenho poucas esperanças de que não vai ser associado à minha pessoa, embora vá ser inicialmente postado como anônimo, e peço às feministas que, concordando ou não com o texto, lembrem-se do nosso "mexeu com uma mexeu com todas", pois temo pela minha segurança, uma vez que já estão constatadas as relações entre os transmisóginos e o movimento masculinista, inclusive a parte mais violenta dele.
    Peço desculpas pela minha dificuldade de me expressar de maneira mais clara e menos elitizada, mas esse problema pode ser menos grave por este ser um debate tão vanguardista. Peço também às feministas que concordem, ainda que parcialmente, com esse texto: por favor, procurem criar coragem de posicionar isso publicamente. Posicionem publicamente os seus acordos tanto quanto vão publicizar as suas discordâncias.
    Peço desculpas, por fim, às transsexuais MTF que não integram nem simpatizam com o grupo chamado "transfeministas" por qualquer transfobia que eu tenha manifestado neste texto. Quero dizer que, por menos que pareça, acreditem, eu estou aberta a sugestões de como aprimorar este discurso para que ele possa ser o menos transfóbico que for possível, sem que no entanto se descaracterize enquanto feminista.
    Gostaria de pedir, ainda, que os auto-intitulados trans"feministas" reconheçam a própria misoginia, e quer continuem se reivindicando mulheres quer não, possam reconhecer ao menos que não são feministas, dada toda a hostilidade ao movimento feminista e às prerrogativas dele que vem sendo demonstrada ao longo dos últimos meses. Lembrando que ao menos um deles já disse, no passado, que não é feminista coisa nenhuma, o que é inclusive bem pouco surpreendente.
    Como um último pedido, peço para que este texto seja visibilizado, inclusive pelxs que discordam dele, pois eu acredito que pode render debates produtivos, caso as pessoas a quem ele interessa possam tomar conhecimento de seu conteúdo.
    A princípio, não tenho intenção de responder a comentários, pelo imenso desgaste emocional que isso gera e pela indisponibilidade de tempo, mas conforme as coisas caminharem, tal pode ser repensado, ou posso ainda publicar um segundo texto contendo uma síntese do que aprendi e aprimorei com os comentários recebidos e lidos.
    Por um feminismo unitário, que supere a fragmentação que os transmisóginos vêm promovendo, peço a paciência de todas na condução de um debate tão delicado.
    Com o maior respeito que me senti capaz de empregar, e esperanças sinceras de mudanças para melhor, encerro, por hora anônima.